Em New York deveria escrever sobre NY, mas não. Em NY teria que escrever sobre esta cidade onde sem querer nos perdemos e perdemos de vista os edifícios a desaparecerem no céu. Mas não. Em NY, se a escrita começasse, começava por qualquer parte, pelos eventos culturais, pelos espectáculos musicais, pelo teatro e pela dança em cada esquina, pelas esquivas, pelos museus, pelo povo de todo e nenhum lado, pela arquitectura de todo o mundo, pelo Metro, pelos que lá nascem, vivem e morrem, pelo movimento, pelas paradas, pelas fachadas nos edifícios e nas pessoas, pelos bares com funcionamento quase perpétuo, pela vida, a vida que aqui não precisa de adormecer para se refazer. Em NY deveria começar por qualquer lado mas, agora que me sento na frente deste computador, e que reparo que não é o meu, não consigo escrever nem sobre NY nem, talvez, sobre coisa alguma. Para além do teclado me obrigar a fingir com maiúsculas os acentos, graves ou agudos, as cedilhas, há o próprio espaço interior do computador, todo ele cheio de diferença. O espaço do meu computador não é virtual como os outros. Tem uma estrutura muito própria, informalmente definida, como todos os outros, mas essa estrutura não está virtualmente definida, como em todos os outros. O seu fundo, ou desktop, como os da área lhe chamam, está repleto de ícones desorganizados ordeiramente, tal e qual como na vida, na minha vida. Em todo ele há uma fatalidade dicotómica, como na vida, na minha vida, há a pasta Trabalho e a pasta Lazer. Dentro de cada uma delas há outras dicotomias dentro de dicotomias, dentro de dicotomias, infinitamente. Dentro da pasta Lazer, só para ficarmos com uma pequena ideia, há a pasta Blogs e a pasta Outros, dentro da pasta Blogs, e apenas para entrarmos no terceiro nível de abstracção, abstracção para quem lê e não para quem escreve, há as pastas Textos e Textos_já_publicados. E por aí fora, sempre binariamente, sempre dicotomicamente, até ao infinito. Por exemplo, se opto pela pasta Textos, naquele momento, fica-me inacessível toda a informação que está na pasta Textos_já_publicados. Raios de dicotomia!
Apesar da fatalidade dicotómica do meu computador, ele é-o com fundo, e ao contrário dos fundos da vida, de qualquer vida, esse fundo existe mesmo. Sintetizando, o fundo é dicotómico como a minha vida mas mais real do que os fundos de qualquer vida. É ele que suporta, e suporta mesmo!, os meus ícones desorganizados ordeiramente.
Na vida, desde que nascemos até que morremos, existem um sem número de fundos, todos eles temporários, todos eles virtuais. Primeiro é o fundo do berço, que aceitamos como um dado adquirido, e que logo logo nos é retirado indo com ele toda a ideia do azul, do mundo azul. Depois há os outros fundos, todos ainda mais virtuais, todos, sem excepção, temporários. Até o fundo família, o mais real e permanente dos fundos, se esvai, em algumas vidas. O que são os fundos amigos, trabalho, namorada, casa, carro, outro carro, outra namorada, outra namorada, outra namorada, o fundo de desemprego, um outro amigo, e por aí fora, até que começamos a pensar nos fundos de reforma? São fundos sem fundo.
Confundo?
Não confundo. O fundo do meu computador é o único fundo com fundo.